amanhece um dia bonito, ensolarado, por aqui.eu, do alto dos meus 58 anos nunca vi - juro! - amanhecer tão deslumbrante!o cigarro na minha mão esquerda, tão perto do meu rosto a ponto de poder ouvir o estalar do tabaco queimando, está no começo, e eu me ponho a pensar em quem será o meu objeto do dia.ah sim, todos os dias eu me ocupo com alguém, um estranho, uma pessoa qualquer que esteja passando por aqui, pra ser o meu trabalho do dia. isso requer certo grau de paciência e muita observação. precisa ser a pessoa certa, que se encaixe perfeitamente nos meus critérios, predispostos e planejados por eu mesmo, para essa tarefa diária.essa ocupação já foi oficial, quando eu servia o exército do meu país, antes de me aposentar.sempre achei que fosse essa minha vocação, por isso empreguei tantos esforços pra fazer o meu melhor, pra me doar ao máximo pra isso.acredito sim em pessoas que nascem destinadas a serem algo, seria uma contradição fortíssima não acreditar. mesmo que essa habilidade nata não seja, tecnicamente, um trabalho. eu falo em vocação: aptidão completa e inegável para determinada tarefa ou comportamento.veja só, o senhor que passa pela rua agora. acredito que para você fica difícil ver, dada a tamanha distância, afinal estamos no 13º andar! mas, com tantos anos de prática em observação, nessa tarefa tão monótona às vezes, tenho os olhos e a mente treinados para perceber toda a realidade escondida por detrás dos rostos e expressões que vejo, sim, muito bem daqui de cima.voltando ao senhor, que carrega o neto pela mão, na calçada, percebo que deve ter tido uma vida difícil, talvez criado no interior, num lugar onde o trabalho o arraigou desde muito cedo, ainda menino. pelas rugas e pela expressão consigo ver que teve a vida repleta de desafios, dores excrutinantes, e hoje, já conformado com todas as injustiças que sofreu, leva no semblante a paz ingênua dos quase-mortos, sem saber que a foice lhe aguarda, logo ali, na esquina próxima.já a moça que vem em sentido contrário, de cabelos presos em um rabo de cavalo no alto da cabeça, calça jeans e camisa, uma pasta de couro no braço esquerdo, aproximadamente 20, 25 anos talvez, leva no andar imponente a insegurança torta dos jovens. insegurança essa que eu sempre notei, que é inerente a qualquer ser humano em parte de sua vida. Não serviria como meu propósito de hoje.O que eu procuro, não só hoje, mas, o que procurei e ainda faço com todo ardor – mesmo sendo meu exercício um hobbie, por agora – é a completa e desilusória infelicidade.Passa agora um homem afoito. Olhando pra trás como se fosse perseguido por um fantasma, ou qualquer sutileza invisível dessas, caminha a passo rápido e desordenado. Um carro se aproxima, encostando na calçada, a seu lado. Dele saem uma mulher, de blusa branca, cabelo cacheado, comprido, amarrado. Diz-lhe bom dia cordialmente, dá a volta no veículo e abre a porta traseira, de onde sai uma criança. Está aí uma coisa que nunca poderá ser meu "objeto de desejo": uma criança. Elas são cheias de vitalidade, felizes por demais! Não me serviria de nada recruta-los como meu propósito de hoje. Nem de dia qualquer.Mais um cigarro, e hoje eu sinto que não poderei passar do segundo para encontrar meu escolhido.Atentem pra este fato: hoje, singularmente, pode ser o primeiro dia de minha já desgastada vida sem um escolhido. O primeiro em 58 anos sem um propósito diário.O homem afoito conversa, agora calmo e sereno, com a mulher. Despede-se e beija a criança, ensaia um abraço. Vira as costas e continua em seu passo apressado, exatamente como entrara no meu extenso campo de visão da cena inicial.Estou quase em desespero. Não agüento esperar mais um minuto sequer. Parece que hoje é o dia tão aguardado. O dia em que, inevitavelmente, minha tarefa não se concretizará, e assim poderei me retirar.Mais ninguém passa, em questão de 6 ou 7 minutos, não sei bem ao certo.Aperto o toco de cigarro no cinzeiro, alojado no parapeito de minha ampla janela, e me preparo para resignar-me e ir passar um café, pra finalmente começar o meu primeiro dia de despropósito.De repente um estalo: Epa. Peraí!Meu olhar pousou sobre uma moça, aproximadamente 30 anos, cabelos louros, já meio sem cor, muito bonita. Usa uma blusa de cor roxa, decotada, exibindo seios belíssimos. Pelo corpo eu não diria que tem lá seus trinta anos, mas vejo pelo semblante, pela expressão que carrega.Em seus olhos há uma opacidade doída. Deles emana uma tristeza que me invade o corpo, a mente. Confunde-me os sentidos. Brinca com minha impureza, com toda a gama de minhas experiências mais sórdidas.Eu seria capaz de descer e me dirigir a ela. Pedir-lhe que ficasse ao meu lado pelo restante que ainda tenho de vida, pra que eu pudesse ter aquele olhar comigo até meu último suspiro solfejar. Mas esse, meus amigos, não é o meu propósito. Ela é minha escolha, minha redenção. Afinal, sou um devorador de gentes!Ajeito o corpo na cadeira de couro, afasto as pernas, inclino os ombros.O estampido: PÁ!A moça, infeliz e indubitavelmente linda, cambaleia e cai, o lindo rosto no meio fio, braços estendidos, como que pede um abraço. O filete de sangue escorre do buraco em sua testa, e me faz sorrir como um garoto.Minha vocação está salva e ativa.Junto a cápsula, parto em direção à cozinha. Coloco a água pra ferver e preparo o filtro no coador de café. Meus dias sem a infelicidade seriam tão descrentes quanto eu mesmo.
idealizado e escrito depois de um nascer do Sol perfeito, em 06 de março de 2009, observando os passantes, da varanda da casa de minha mãe.
idealizado e escrito depois de um nascer do Sol perfeito, em 06 de março de 2009, observando os passantes, da varanda da casa de minha mãe.
Comentários
"Afinal, sou um devorador de gentes!" - isso foi incrível. Eu acho que também sou uma devoradora de gentes hahaha
É isso, devo voltar ao meu trabalho agora? Devo né? Ok! TCHAU TCHAU!
"tristezas redem belos textos"
Muito bom!
Se eu passar aí perto, tomo bala!
“I never wanted to kill.
I am not naturally evil...
Such things I do
Just to make myself
More attractive to you.
- Have I failed?”