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Mostrando postagens com o rótulo ficcional

lapso.

ele entrou na garagem, sentou no carro e parou com a mão na chave no contato. pensou em tudo o que ela lhe dissera no momento anterior, sobre como ele não tinha qualquer interesse nela, sobre o fim. recostou a cabeça no banco e fechando os olhos, adormeceu. acordou em outro carro, de outra cor, no meio da estrada. teve dificuldade pra controlar o veículo. tentava se lembrar de como tinha ido parar lá. de repente, ao seu lado, ouviu: - Amor, você tá legal? - Tati???? - disse ele com cara de quem chupou limão. - E quem mais seria, André? - É... É... Quem mais? sorriu. pisou mais fundo no acelerador, o vento batendo nos cabelos que lhe açoitavam o rosto. a curva que vinha pela frente seria mais que uma curva. no começo dela ele recostou a cabeça comodamente no banco, e de novo adormeceu. acordou num sofá, em frente a tevê. o noticiário despejava tragédias sensacionalisticamente. sentia sede, muita sede. levantou, sentiu-se tonto, apoiou-se no que pode pra chegar até a cozinha. o filtro es...

saudade.

ele esperava. nunca chegava no horário, mas hoje tinha conseguido ser pontual. a impaciência - pontuada por passos curtos daqui pra lá - era efeito da pontualidade dela, que sempre chegara antes dele. ela chegou, olhando-o com uma expressão de desculpas, com o mesmo andar sereno de todas as vezes. - oi. e aí? - ele disse. - tudo bem. e aí? - respondeu ela. ele abriu um sorriso e disse: - aí. (...) (eu vivo tão sozinho de... saudade.)

a escolha #4.

se para ele aquele mesmo instante de êxtase tinha se tornado um martírio, agora já não se tratava simplesmente de uma questão profissional. as intermitências do tempo, esse grande brincalhão, haviam lhe trazido um novo desafio, assim como o mar, outrora revolto, no momento de calmaria traz os restos do barco afundado. a questão agora se tornara estritamente pessoal, coisa que não havia acontecido em todos esses anos de prática da temida (e redentora) Escolha. aquela moça lhe intrigava tão profundamente que queria ser capaz de causar nela dor muito mais fustigante que o suspiro lépido da morte. precisava pensar em como se vingaria da única pessoa que conseguira escapar do seu julgo até ali. acalmou-se, fitou o horizonte tímido que ali surgia. recostou-se na poltrona e contemplou a primeira estrela que já surgia no céu. deixou que o tempo agisse, à partir dali. iria ter sua vingança, cedo ou tarde. o desafio contra a moça de cabelos curtos e lábios carnudos estava lançado... pra quem...

muito barulho por nada (ou a arte de parafrasear shakespeare sem dar sequer a mínima pra tudo o que ele disse).

era uma vez a Cidade Perfeita. lá tudo funcionava perfeitamente: não havia lixo na rua, não se viam mendigos ou crianças abandonadas, todos estavam inseridos na sociedade e dela participavam ativamente. não havia corrupção, os ônibus nunca estavam lotados. e é de dentro de algum desses veículos que o nosso amigo Reginaldo começou a revolucionar. vinha ele com seus fones de ouvido, o terno alinhadíssimo, postura ereta. sentou-se numa poltrona vazia. não havia ninguém do lado. até uma moça entrar pela porta do ônibus, girar a catraca e aproximar-se dele. ela já era conhecida de vista de Reginaldo, tomavam a condução juntos quase todos os dias. sempre se entreolhavam, um sentado num banco à frente do veículo, outro sentado mais atrás. estavam sempre se esbarrando. mas Reginaldo nunca tinha se proposto a ir falar com a moça. hoje porém, achava que seria diferente. observou os movimentos esguios da guria, com olhar atento. ela veio, procurou por um lugar vazio, e sentou-se exatamente do lad...

sobre o que ninguém entende (e nunca poderá entender, obrigado).

Na pressa de encontrar motivos me perdi. O Sol, a essa hora já se pondo, refletia a minha imensa falta de vontade em viver. Balbuciei palavras, friamente. Retive nos olhos as expressões mais contidas. Enganei a todos. Acharam que eu iria pra rua, ser aquele por quem todos lamentam, o cara que não deu certo. Mas eu tenho o dom de me reconfigurar. A singela aptidão de transformar o meu calvário em redenção, e isso sem mostrar nada, pra ninguém. Por quê? Porque ninguém entende. Ninguém poderia. O meu modo de vida é sim, arcar com o mal. Sobre amá-lo, eu faço tipo. O que eu amo é entrar numa rua, num bar, numa casa, respirar fundo e sentir o cheiro da alegria. Ouvir acordes enquanto quase passo mal de tanta admiração. Sentir as coisas, do jeito que eu não sentia. O sangue correndo nas minhas veias, oxigenando o meu pobre cérebro. "get on the turkish line you've never written a diamond under my door i'm through this door..." ouvindo Vanguart - Beloved.

Sou #1.

Marcelo era um cara normal. A infância tranqüila em meio ás peladas de rua, banho de mangueira no quintal dos fundos, a roda de choro no domingo, pegar o violão do avô escondido... Essas eram as lembranças mais frescas na sua memória. Mas não tinha lembranças claras de convivência, com qualquer familiar que seja.A adolescência, perdida entre discos de Cartola e Chico, encontrou-se nas bandas de rock oitentistas, nas calças rasgadas e no baixo que ganhara do seu pai, antes desse falecer. Foi cuspido para a vida adulta, assim, na marra, logo aos 17, com a morte da mãe. Depois disso, foi tudo um turbilhão. Viu-se obrigado a sustentar-se e a arcar com os estudos, que acabavam naquele ano, pra alívio do rapaz. Forçando a memória não conseguia perceber a lacuna enorme que havia entre conseguir a vaga no Diário e ver a si mesmo casado e prestes a se tornar pai. Jane era o oposto dele. Não combinavam em nada. Pensando bem, agora, não sabia como tinham mantido o namoro por dois anos. Mesmo vasc...

a escolha #2

virei as costas e dei alguns passos, com o cigarro aceso na mão esquerda, a outra enfiada no bolso da calça. a chuva só não me açoitava o rosto por causa do capuz que eu usava. de repente me senti observado, não pelos olhos que eu tinha deixado mareados, ali, há poucos metros para trás, mas por outros olhos, distantes, frios, redentórios. continuei caminhando, olhando pro prédio à minha esquerda. um brilho, de espelho, refletindo alguma luz, me bateu nos olhos. soube que tinha pouco tempo. me despedi mentalmente dela. dei o último trago no cigarro e joguei a bituca no meio fio. uma bala atravessou meu peito, antes mesmo da bituca tocar o chão. fui o escolhido. assim, fica marcada a dor em mim. câmbio, desligo.

a escolha #1

amanhece um dia bonito, ensolarado, por aqui.eu, do alto dos meus 58 anos nunca vi - juro! - amanhecer tão deslumbrante!o cigarro na minha mão esquerda, tão perto do meu rosto a ponto de poder ouvir o estalar do tabaco queimando, está no começo, e eu me ponho a pensar em quem será o meu objeto do dia.ah sim, todos os dias eu me ocupo com alguém, um estranho, uma pessoa qualquer que esteja passando por aqui, pra ser o meu trabalho do dia. isso requer certo grau de paciência e muita observação. precisa ser a pessoa certa, que se encaixe perfeitamente nos meus critérios, predispostos e planejados por eu mesmo, para essa tarefa diária.essa ocupação já foi oficial, quando eu servia o exército do meu país, antes de me aposentar.sempre achei que fosse essa minha vocação, por isso empreguei tantos esforços pra fazer o meu melhor, pra me doar ao máximo pra isso.acredito sim em pessoas que nascem destinadas a serem algo, seria uma contradição fortíssima não acreditar. mesmo que essa habilidade n...

a culpa é de quem?

eu escolhi a dedo as palavras. meti, no meio de nós dois, tantas sílabas quantas foram possíveis. você nem sequer me deu tempo de sonhar. convenci-me de que tudo havia terminado. a parte ruim, pelo menos. em uma semana, soube que o pior estava por vir. {hoje, não sobrou nenhum vestígio de humanidade em mim. saco a pistola, lhe beijo a testa, e puxo o gatilho.} e u f o r i a .

Circo Instancial.

- você não faz questão nenhuma de entender! - EU não faço??? é diferente não fazer questão de entender algo que se pode, Luísa! - você é um cretino, Marcelo! - é... talvez eu seja um cretino mesmo. mas pelo menos eu assumo isso. a porta bateu estrondosamente. Marcelo sentou-se na cama, esperando a volta da namorada, talvez com uma faca ou um revólver na mão. não deu outra: - Eu vou me matar! - disse ela, brandindo a faca contra o próprio pescoço. - Luísa! olha a sujeira!!! pelamordedeus! - FILHO DA PUTA!!! - ao dizer isso, ela joga a faca contra o namorado, num gesto de fúria cega. o cabo atinge a testa dele, que atordoado, se apoia na janela. um filete de sangue escorre pelo rosto, bifurcando-se no nariz e caindo sobre cada uma das maçãs do rosto do rapaz. - Luísa, você tá maluca, mulher??? - diz ele, ainda meio tonto. - Ai, Meu Deus!!! - Luísa diz, com olhar culpado. - Sai daqui, sua desequilibrada! - Marcelo refuta o toque da garota, se afastando bruscamente. Luísa começa a chorar. ...

os segundos depois do clique.

o vulto vinha em sua direção, cada vez mais feroz. cada vez mais veloz. a escuridão do cômodo não lhe deixava ver a face do agressor, que já envolvia os dedos em seu pescoço. arrastou-o até o canto da sala, onde uma réstia de luz penetrava pela janela. pôde ver-lhe os olhos, cinzas de ira, vermelhos de ódio. pensou em todas as coisas das mais ruins que tinha feito, a fim de justificar, ou pelo menos tentar, as atitudes violentas que o cidadão à sua frente tomava, sem uma gota sequer de hesitação em si. não conseguia entender por que ele devia ser tão sumariamente executado, ali, peito despido, só de cuecas, na sala do apartamento escuro, no meio da madrugada, tendo sido acordado de um sonho com a vizinha do lado, uma jovem de 17 anos. ouviu o roçar do metal no tecido do bolso do homem, que levantou o objeto por cima do ombro. ouviu um clique metálico e logo se deu conta de que seriam seus ultimos segundos no mundo. um estampido, a arma apontada pra parede manchada de sangue, um buraco ...

ócio.

a luz da tevê brilhava nas lentes dos óculos, já tão arranhadas que era quase impossível enxergar através delas. "ruim com elas, tanto pior sem...", pensou. deu o trago derradeiro no último cigarro do maço, olhou pras paredes mofadas, como se pudesse lembrar da aparência que elas tiveram no passado (o que era impossível, afinal, havia chegado ali faziam 3 meses, e desde já elas eram como são). levantou-se da poltrona, a tevê gritava algo sobre um acidente ou notícia trágica do gênero. caminhou em direção a cozinha, abriu a geladeira e pegou a última lata de cerveja da prateleira. abriu, deu um gole, lembrou da noite anterior. vagamente. era o que conseguia. sabia que tinha passado da conta, que passara a noite com alguém de quem não conseguia lembrar nem o rosto, nem o gosto do beijo. não havia mesmo feito diferença alguma. o sexo havia sido comum. terminou a cerveja, ainda na cozinha. colocou a lata vazia em cima da pia, abriu o armário e pegou um ou dois biscoitos. c...